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Rua de São Paulo, Lisboa (imagem da internet)

Rua de São Paulo, Lisboa (imagem da internet)

o lugar dos poetas preocupa-me
como, a outros,
a inevitabilidade da fome.

acordei de madrugada angustiado
com a bruta finalidade
do que, composto pelas mãos, existe
e contra isso,
na roupa e no banho quente
e nos artigos sobre a arte
urbana indigente transviada,
lançando papéis e moedas
no grande refluxo
enxurrada
da confusa canalização lisboeta,
tentar manter a humanidade penteada;
ou então, por outro lado,
e de outro modo,
resolver-me em cálculos
e fiar-me completo na ciência,
assassinando qualquer deus
que finjo, por tudo,
tentar não querer acreditar;
vasculhar armários
revolver roupa,
um elegante fato de três peças
para baú
talvez porão
das minhas tralhas
e o meu nome
baptizado registado e vinculado
o absolutíssimo carimbo confirmado
do meu lugar.

disse:
o lugar dos poetas preocupa-me
e à leitura de poemas
o bar de putas, se puder
(e digo “putas” porque é próprio da idade
e do modo que construo
e digo “putas” porque há cheiro e apetite
nesse som
e digo:
cama
aos saraus de poesia, se puder,
é o que escolho,
porque a outros
como a fome
me dói o sangue
e dói-me a pele
como repito
tantas vezes
à exaustão).

acordei de madrugada há vários anos
angustiado, como disse, com a fome
como a outros,
se puder,
o rio à tarde
é o que escolho.

© João Silveira